sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Conversas de Herbário: "Heaven's here on earth..."


Belazaima, cortesia de Paulo Domingues

Pode apresentar-se, por favor?
43 anos, casado, uma filha de 5 anos. Licenciatura e Doutoramento em Engenharia Electrónica e Telecomunicações pela Universidade de Aveiro. “Divorciado” de ambas (Lic. e Doutor.). Trabalho numa empresa familiar 3 dias por semana, na área da energia solar. Trabalho um dia por semana no campo e outro em casa. Gosto de música e toco um bocadinho de piano. Interessam-me os temas de crescimento interior e espiritualidade, mais de um ponto vista prático do que especulativo. Sou vegetariano (a minha esposa e filha também, claro). Sou membro da Quercus há 20 anos. Neste âmbito interessam-me sobretudo os temas da recuperação de ecossistemas nativos e da agricultura biológica.

Como surgiu o seu “despertar” para os problemas ambientais?
Moveu-me primeiramente a problemática da “eucaliptação”. O Concelho de Águeda (o meu) é o mais “eucaliptado” do país. A minha freguesia (Belazaima) é uma das mais “eucaliptadas” do Concelho. As consequências sobre a paisagem e a biodiversidade foram devastadoras. Foi a consciência desse facto que me levou a dar o primeiro passo. E o primeiro passo foi exactamente tornar-me membro do então Grupo Quercus (Quercus – Grupo Para a Recuperação da Floresta e da Fauna Autóctones), mais tarde Associação.

O que é o projecto “Cabeço Santo”, em Belazaima?
É um projecto que nasceu das cinzas de um grande incêndio que em Setembro de 2005 devastou numa única noite de Setembro toda a mancha de eucaliptal a sul e a nascente de Belazaima, queimando também pequenos núcleos de vegetação nativa que existiam num monte a nascente de Belazaima: o Cabeço Santo. Eu já fazia há muitos anos trabalho de recuperação ecológica, conhecia bem essas áreas, e sabia que havia aí um grave risco de invasões biológicas após o fogo, devido à presença de espécies com características invasoras, particularmente do género Acacia.
Por isso, logo após o incêndio, contactei a Celbi, empresa proprietária de uma grande parte do Cabeço, e onde se encontram a maior parte dos núcleos de vegetação nativa, no sentido de obter apoio e permissão dos seus responsáveis para intervir nesses núcleos. Depois, já em 2006, propus à Quercus criar um projecto, com dois objectivos principais: adquirir um terreno, junto à propriedade da Celbi, onde se encontrava um importante núcleo de vegetação nativa, e promover a realização de trabalhos com o objectivo de limitar os estragos que as mais que prováveis invasões biológicas iriam causar. Estes trabalhos realizar-se-iam não apenas no terreno a adquirir mas também nas áreas da propriedade da Celbi, nas quais entretanto esta tinha permitido a intervenção.
Assim, em Setembro de 2006, quase um ano após o incêndio, realizou-se no Cabeço Santo um primeiro Campo de Trabalho Voluntário no âmbito do projecto, e em Dezembro do mesmo ano foi formalmente adquirido o terreno, um espaço com a área de 7 ha. No entanto, a área total a recuperar e proteger é muito mais vasta, pois a Celbi (depois a Silvicaima, já que a Celbi foi entretanto vendida, passando o património florestal para a Silvicaima) fez um projecto de replantação da propriedade onde reservou cerca de 60 ha para protecção. Como grande parte desta área está severamente invadida com acácias (agravando-se após o fogo), e sendo o trabalho de recuperação muito exigente em mão-de-obra, o esforço necessário é gigantesco, para os recursos disponíveis.
Por outro lado, os Campos de Trabalho Voluntário realizados em 2007 demonstraram que não é fácil ter uma adesão significativa e persistente de voluntários. Neste ano, muito trabalho foi já realizado com recurso a mão-de-obra remunerada, mesmo aquele que poderia ter sido facilmente realizado por voluntários. Apesar disso, em 2008 o projecto adquirirá uma nova dimensão, ao prolongar a sua intervenção para áreas ribeirinhas do Ribeiro de Belazaima, aqui tratando-se já de reconversão de eucaliptal para bosque nativo com predominância de carvalho roble.
Saber mais: Projecto Cabeço Santo , Belazaima

A população local está motivada, aderiu à iniciativa?
A adesão da população local foi muito escassa. Realizou-se uma conferência pública e foi enviada uma comunicação com pedido de apoio para todas as casas da freguesia, mas a resposta foi mínima. Entendo este facto mais como um sinal do caminho que ainda há a percorrer para a evolução das mentalidades, do que como um pretexto para classificar uma comunidade.

Na sua opinião, porque é que as pessoas, em geral, dão pouca importância às plantas e à Natureza, quase um desprezo?
É uma consequência do paradigma em que a sociedade se baseia para conceber o mundo em que vive. Um mundo em que a técnica se sobrepõe à estética, a ciência à espiritualidade, a mecânica à magia. Um mundo sem noção de sentido nem de caminho, em que a angústia existencial se atenua com consumo e diversão. Em que o medo do outro e do devir se resolve com isolamento e acumulação. Deste modo não há apreciação pela beleza de uma árvore, de uma paisagem ou de uma flor. Não há um sentimento de pertença nem de comunhão. Apenas apropriação e recursos a explorar.

Então, qual o valor de uma árvore?
Elemento fundamental do ecossistema florestal. Ser vivo de grande beleza e perenidade. Mãe protectora, que nutre, abriga, cura, inspira.

O que apreciaria que fosse feito em termos de protecção ambiental em Portugal?
O ambiente é uma “orquestra” com inúmeros “instrumentos”, e todos eles, desde o mais simples ao mais elaborado, necessitam de estar “afinados” para que a orquestra toque a “peça” devidamente. O que é preciso, fundamentalmente, é que as consciências saltem para outro paradigma, uma Nova Era já anunciada mas ainda pouco praticada. Um tempo em que a evolução interior (em sabedoria, serenidade, confiança, amor universal…) seja mais importante que o crescimento do PIB. Se a transformação não sair do âmago, podem-se afinar uns instrumentos, mas desafinam-se outros e a orquestra continua desafinada. Não posso dizer quais os instrumentos da orquestra gostaria de ver afinados. Todos precisam de o ser.

Pode partilhar connosco a sua definição pessoal de “Natureza”? Que significado tem na sua vida?
Não se pode “definir” globalmente Natureza. Qualquer definição engendrada por uma mente humana seria imperfeita ou incompleta. Ela limitaria os horizontes da coisa definida aos limites e termos precisos da definição. Mas posso dizer que ela representa o pulsar da vida na sua evolução cósmica; que nós, seres humanos, fazemos parte dela porque participámos e continuamos a participar da mesma evolução; que ela é um livro aberto sobre a vida e um espelho simbólico de nós próprios; que a beleza que dela transparece, nascida do caos e da desordem, é uma representação viva do nosso caminho humano.

O que deseja dizer aos jovens, no sentido da sua sensibilização pela defesa do ambiente?
Que procurem preferir e cultivar a frugalidade ao consumo, a serenidade à agitação, a beleza à utilidade, a contemplação à acção, a reflexão à impulsão, a profundidade à futilidade, a espiritualidade à religiosidade, o amor à paixão, a confiança ao medo…

Eu estou convencido, como já estava quem há muitos anos me ensinou a pensar assim, que as crises do ambiente são um reflexo de crises intrinsecamente humanas, e que não será possível resolver as primeiras sem abordar séria e correctamente as segundas. Ou pelo menos que ambas devem ser abordadas ao mesmo tempo. Só que abordar as segundas é muito mais difícil do que abordar as primeiras. E as “ferramentas” oficialmente aceites para o efeito têm-se revelado de uma incrível ineficácia. É angustiante verificar como a informação veiculada por pessoas influentes, meios de comunicação de massas e mesmo manuais e programas escolares (!) é pobre em ferramentas para o trabalho de cada um sobre si próprio. E contudo muitas dessas ferramentas já existem há muito tempo. Elas estão no substrato mais primitivo de todas as grandes religiões do mundo, mas substrato esse que foi sendo ocultado e adulterado pela sede de poder e de dominação ao longo da história.

A sociedade em que vivemos é tanto um sistema de dominação da natureza pelo homem como, talvez ainda mais, um sistema de dominação do homem pelo homem. A economia, tal como a conhecemos, é um sistema de dominação dos que têm menos pelos que têm mais. Muitos problemas ambientais não podem ser resolvidos sem este sistema de dominação ser ultrapassado. E este sistema de dominação dificilmente é ultrapassado se quem domina continuar a sentir vontade de o fazer. E a vontade de o fazer dificilmente é desmontada se os desejos tornados necessidades e outras necessidades para manter o sistema a funcionar se multiplicarem. E as necessidades dificilmente diminuem sem o tal trabalho interior.

Esta resposta, claro, levanta mais dúvidas do que presta esclarecimentos. Aponta um caminho mas não diz como percorrê-lo. Nem poderia porque a forma de o percorrer é largamente pessoal e tem de ser descoberta por cada um. Percorrê-lo tem algo de heróico mas os seus heróis não são reconhecidos como tal nem aclamados. Nem precisam, porque não é para serem aclamados e respeitados que o percorrem. No passado, esse caminho era percorrido por uma minoria como uma forma de atingir a realização plena. Agora necessita de ser percorrido por uma maioria, já não apenas como forma de atingir a realização plena mas como meio para salvar a vida na Terra de um cataclismo único na sua história.

Se esta resposta parecer difícil de usar, então aqui vai outro conselho: procurar adquirir uma consciência o mais alargada possível de cada acto e opção da nossa vida. No que compramos: com que impactos foi produzido, que recursos usou, com que respeito e compensação por quem trabalhou, que distância percorreu, que lixo gerou e vai gerar. No uso da energia: como podemos diminuir o consumo, no aquecimento, no transporte, em toda a panóplia de aparelhos eléctricos de que dispomos. Na forma como gerimos os nossos resíduos: separando o máximo, pondo o mínimo no lixo indiferenciado. Na forma como gerimos o dinheiro das nossas poupanças (importante!): estar mais consciente do que se encontra por detrás das ofertas de rentabilidade dos bancos e instituições de crédito. Nas opções de férias e diversão: evitar as viagens de longo curso e as infra-estruturas turísticas de grande impacto. Na alimentação: fazer opções que minimizem a pressão sobre a terra e as criaturas com as quais partilhamos o planeta, preferindo produtos biológicos, dando prioridade à proximidade, consumindo pouca ou nenhuma carne nem peixe.

Aprender a apreciar e a amar todas as manifestações da vida!

Paulo Domingues

Nota: O titulo deste post é de uma música de TRACY CHAPMAN - "Heaven's Here On Earth" (Album New Beginning, 1995)

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