Conversas de Herbário: What kind a world do you want?
Erica (Herbário em Pindelo dos Milagres, Maio 07)
Pode apresentar-se, por favor?
Chamo-me Ana Cláudia, tenho 34 anos, sou casada e tenho duas filhas de 4 anos (gémeas), a Clara e a Beatriz.
Adoro música de todo o tipo, desde música clássica em geral, sobretudo piano e violino, – Chopin, Bach, Prokofiev e, claro, Mozart (um génio) -, até à música brasileira, como a de Caetano Veloso, passando pela música popular portuguesa de Pedro Barroso e o mais recente Rodrigo Leão (os meus compositores portugueses favoritos). A propósito, toco acordeão, um instrumento muito popular.
Para além de ouvir música, gosto de ler, em especial biografias, viajar e acima de tudo conhecer pessoas e conversar com elas, partilhando experiências.
O que faz? Porque escolheu essa profissão? Como chegou até ela?
Licenciei-me em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra no curso de 1990-1995; participei durante o curso, no ano lectivo 1994/1995, no “Programa Erasmus”, ao abrigo do qual passei cerca de 5 meses em Roma, na Faculdade de Direito “La Sapienza” e posso dizer que foi uma das melhores experiências da minha vida.
Fiz o estágio (incompleto) para o exercício da advocacia, tendo tido sempre - desde que optei pelo curso de Direito – por objectivo tornar-me advogada.
Ao fim de cerca de um ano de exercício de advocacia apercebi-me no entanto que talvez não estivesse vocacionada para a profissão que poderia exigir de mim posições e atitudes que, em consciência, não me pareciam as mais “justas”, embora fossem as mais adequadas a defender os interesses do cliente.
Nessa altura, achei que poderia tentar a carreira da magistratura, acreditando que como magistrada poderia optar livremente pelas decisões mais justas.
Ingressei assim no Centro de Estudos Judiciários (escola de formação para magistrados), em Lisboa, no ano de 1997, onde permaneci até 1998, altura em que passei para a fase de estágio como “auditora” no tribunal de Santa Maria da Feira.
O curso do C.E.J. destinava-se à formação de magistrados judiciais, que vocês conhecem por “Juízes”, e de magistrados do Ministério Público, mais conhecidos por “Procuradores”, e que representam nos Tribunais os interesses do Estado, designadamente o da perseguição e punição dos autores de crimes.
Tendo inicialmente uma inclinação para o Ministério Público, por nesta magistratura poder ter a iniciativa, por exemplo, de iniciar uma investigação sobre uma qualquer violação legal que prejudicasse a comunidade e/ou constituísse crime, levando à condenação dos seus responsáveis, fui-me apercebendo que esta magistratura lidava com dificuldades resultantes do facto de não ter disponíveis os meios suficientes para exercer plenamente as suas competências e, além disso, ter uma hierarquia que, de algum modo, poderia condicionar a minha liberdade de decisão.
É certo que o Juiz não pode decidir a seu bel prazer de acordo com o seu sentido de Justiça, pois deve em primeiro lugar obediência à Lei; e por vezes esta Lei, criada pelos governantes políticos, eleitos democraticamente (deputados na Assembleia da República e Governo) não leva, no caso concreto, à solução mais “justa”. Mas essa mesma Lei é “maleável”, permitindo interpretações por parte de quem a aplica, designadamente os Juízes, adequando-a às situações concretas e assim criando a chamada “jurisprudência” – uma certa interpretação da Lei para determinado caso concreto.
Optei, por isso, enfim, pela magistratura judicial, que exerço desde 1999, ano em que concluí a fase teórica do estágio.
Que dificuldades sente ao exercê-la, no seu dia-a-dia?
Nunca me arrependo desta opção, pois, apesar das dificuldades encontradas no exercício das minhas funções, que se prendem sobretudo com o excesso de trabalho, já pude sentir-me realizada em casos concretos de decisões que resolveram problemas importantes para as pessoas envolvidas.
Comecei por exercer funções no Tribunal de Santa Maria da Feira (1999-2000), fui depois colocada no Tribunal de Castro Daire (2000-2001), e a seguir no Tribunal de Silves, no Algarve (2001-2002); Exerci depois as funções de Juíza de Instrução Criminal em simultâneo nos Tribunais de Maia, Valongo e Gondomar (2002-2004); em seguida, fui colocada no Tribunal de Oliveira de Azeméis (2004-2006) e estou actualmente a exercer funções no Tribunal de São João da Madeira.
No meu percurso profissional, provavelmente como todos os profissionais de todos as áreas deparei-me com algumas dificuldades e frustrações.
Este é o lado menos “romântico” da profissão.
Para além do elevado número de processos que em regra é dado a um juiz para decidir, não lhe sendo possível apreciar cada caso com o tempo que seria desejável, somos chamados diariamente a gastar mais de dois terços do tempo de trabalho em tarefas burocráticas, realizando em dezenas e dezenas de processos o chamado “despacho de expediente”, aquele em que não se decide nada de relevante, mas que tem que ser dado para dar andamento ao processo, como por exemplo dar ordem à Secretaria para notificar determinada pessoa de certo documento; ou seja, só raramente fazemos aquilo de que facto gostamos e para que fomos preparados: julgamentos e decisões efectivas sobre as questões que nos são colocadas nos processos. Difícil de compreender, não é? Também acho.
Além disso, os juízes têm uma obrigação estatutária de reserva e discrição inerente às funções de alta responsabilidade que exercem e porque têm que exercê-las imparcialmente, isto é, sem revelar quaisquer preferências por qualquer das partes em litígio, em confronto no processo, decidindo apenas segundo a Lei e a sua consciência.
E depois, não basta “sê-lo” há que “parecê-lo”.
Ou seja, não basta ao Juiz ser imparcial, julgar de forma séria e consciente, tem de ter uma postura e uma atitude na comunidade que faça com que esta lhe reconheça autoridade moral para poder julgar os seus concidadãos.
Por outro lado, o Juiz decide sozinho, sendo sua a última palavra, o que, associado ao que acabamos de referir, leva também a um certo distanciamento nas relações sociais, por forma a não comprometer eventuais decisões que sejam chamados a tomar.
E quais são para si as compensações, ou seja, porque se realiza nesse tipo de trabalho?
Apesar de todas estas restrições e dificuldades, não deixa de ser muito interessante e motivante ter a possibilidade de tomar decisões, às vezes pequenas, mas que alteram em muito a vida das pessoas.
E isso é muito gratificante.
Tal sucede, pelo menos no meu caso, sobretudo em casos que envolvem crianças negligenciadas e abandonadas pelas suas famílias biológicas, e é depois encontrada pelo tribunal, em colaboração com as instituições de solidariedade e segurança social, uma solução de adopção ou de acolhimento em famílias ou instituições, que lhes permite levar uma vida normal de crianças, longe de maus tratos e abusos.
Estou actualmente a frequentar o curso de pós-graduação em Direitos Humanos e Democracia, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Está a ser uma experiência reveladora e fulcral para mim a nível pessoal, pois está a permitir-me fazer uma releitura de tudo à minha volta, das minhas relações, do modo como vejo o mundo e, claro, da forma como exerço a minha profissão, a uma luz diferente, à luz da pessoa humana e dos seus direitos mais essenciais.
Que significado têm para si os “Direitos Humanos”?
Embora tivesse subjacente à minha actuação seja na vida pessoal seja na vida profissional uma ideia de direitos humanos e de necessidade de protecção intransigente desse direitos, por personalidade e por formação, pude agora tomar conhecimento de outros campos de concretização dessa ideia, e de toda a sua dimensão transversal e universal – atravessa todos os campos da nossa vida e aplica-se a todos os povos do mundo.
Conte-nos, se possível, uma situação “difícil” de resolver, em termos de Direitos Humanos, enquanto juíza. Sente que estes são tidos em conta nas decisões judiciais? Deveriam estar mais presentes?
Antes de frequentar este curso e quando exercia as funções de Juiz de Instrução Criminal fui chamada a tomar uma decisão de aplicar a uma cidadã estrangeira, de nacionalidade romena, uma medida de coacção, ou seja, uma das medidas previstas no Código de Processo Penal e que são aplicadas em processos criminais a pessoas em relação às quais se investiga a prática de crimes e por forma a evitar que continuem a praticá-los ou que fujam à Justiça ou ainda, obviando a que causem distúrbios na comunidade ou no andamento dessa investigação.
Havia prova no processo que me convenceu de ter esta cidadã praticado crimes de auxílio à emigração ilegal e de lenocínio (exploração económica do acto de prostituição de outra pessoa).
Existia também um elevado risco de fuga para o seu país de origem, desse modo impossibilitando à Justiça portuguesa vir a julgá-la por aqueles crimes.
Estavam reunidas todas as condições para que esta senhora fosse sujeita à medida de coacção de prisão preventiva.
Sucede que ela estava com duas crianças pequenas, seus filhos, que teriam que a acompanhar na prisão, porque o pai estava também preso, inexistindo qualquer outro familiar que pudesse ficar com eles.
Foi uma decisão bastante difícil, mas optei por decretar a prisão preventiva, tendo no entanto diligenciado desde logo pelo acompanhamento de toda a situação por técnicos da Segurança Social por forma a assegurar que a referida senhora pudesse ser colocada em estabelecimento prisional com condições para receber crianças filhas de reclusas, mantendo a convivência com estas, o que consegui.
O que deseja, no futuro, para a sua profissão?
Terminando esta “entrevista” e seguindo, embora de forma indisciplinada, o cardápio de perguntas que me foi dado, devo dizer que nesta como noutras profissões em que se lida com as pessoas e o com o que elas têm de mais precioso – , como é também o caso da vida e da saúde, para os médicos -, é essencial que os profissionais respectivos mais do que bons técnicos, sejam acima de tudo “boas pessoas”.
Não no sentido de serem “bonzinhos” e fazer tudo para agradar aos outros.
Diria que ser um “bom profissional” na minha área, como noutras, é ver a sua actividade profissional como um serviço que se presta ao outro, colocando-se no lugar dele e actuando como gostaria que se actuasse consigo, tratando dos seus interesses como se seus fossem. Era importante que, apesar do dever de reserva que acima referi, os Juízes conseguissem aproximar-se da população que servem, transmitindo-lhes que estão ao seu serviço e que fazem o seu melhor, o que nem sempre tem vindo a ser compreendido.
Por um lado, porque o Juiz nunca “agrada” a ambas as partes, pois tendencialmente haverá uma que “ganha” – vê a sua pretensão atendida - e outra que “perde” – vê a sua pretensão recusada.
Por outro lado, porque lhes são imputadas, injustamente, as responsabilidades pelo estado em que se encontra a nossa “Justiça”, quando a esmagadora maioria de nós trabalha de segunda a domingo, à noite e nas férias, com prejuízo para a sua vida pessoal e familiar, dando o seu melhor.
Espero que este meu humilde contributo vos aproxime da “Justiça” do vosso país e que, como seus cidadãos de pleno direito, seus futuros juízes, professores, mecânicos, cientistas, e governantes, vos aguce o espírito crítico e vos faça sentir também responsáveis por melhorar o que há para melhorar, nomeadamente na área da Justiça e dos Direitos Humanos.
Com todo o apreço e esperançada de um dia vos conhecer pessoalmente,
São João da Madeira, 1 de Maio de 2007
Ana Cláudia Nogueira
Nota: O titulo deste post foi retirado de uma musica dos FIVE FOR FIGHTING - "What kind a world do you want" ( lyrics by... )
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